Já me perquiri, é claro, sobre meu desconforto com datas assinaladas para expressar emoção. Raramente conversei sobre o tema com alguém. Lembro-me, contudo, que num passeio em que conduzi Luis Alberto Warat às praias do Sul de Santa Catarina falamos sobre a Praça da Apoteose, Sambódromo, Rio de Janeiro. Compartilhávamos o mesmo espanto.
Warat foi meu professor. Tempos de ditadura. Ele era um elemento suspeito, pois, ademais de namorar minha também professora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada de presos políticos, era um argentino que escapara dos militares de seu país, que, à luz do dia, raptavam em público suas vítimas, levando-as a sessões de tortura e muitas vezes à morte.
Warat contou-me que chegava ao prédio em que residia e percebeu as circunstâncias pelo olhar que o porteiro lhe dirigiu: “Su mirada duró um poco más y contenía algo de assombro, algo de miedo”. Simulou conferir os bolsos, voltou para buscar o que não esquecera e acabou como professor de Direito em UFSM (Universidade Federal de Santa Maria, RS).
Depois transferiu-se para a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Não lembro o nome da sua disciplina, mas tinha a ver com relações entre Direito, Política e Poder. Frequentava a minha casa, comia da moqueca de peixe que minha mãe fazia e, dada a sua soltura discursada e praticada, permitia-se uma soneca prolongada no chão da sala.
Rasgos de fina ironia marcaram sua passagem pela UFSC. Dois momentos: greve de estudantes para comprar livros; manifestou-se contra; estudantada decepcionada com alguém de esquerda desapoiar o movimento. Explicou: “Se comprarem mais livros, serão livros de direita, vocês os lerão, ficarão mais à direita do que já são”. O assunto foi à assembleia geral.
Noutra ocasião, o CCJ, departamento que nos abrigava, reuniu-se para discutir o uso do espanhol em aula. Quando lhe coube a palavra, Warat, em espanhol, propôs que se proibisse o espanhol. Exposto o absurdo, findada a reunião. Suas aulas, palestras, livros e artigos na Sequência e na Contradogmáticas deram sedutora substância à Teoria Crítica do Direito.
Bem, falávamos sobre carnavalização e chegamos ao carnaval, que acontecia enquanto passeávamos. Carnavalização é teoria de Mikail Bakhtin, para quem carnaval é uma vida paralela do povo, à margem da religião e do Estado, simulando liberdade e abundância, suspensão de hierarquias, dissolução das fronteiras entre a criação da folia e o peso da realidade.
Este antigo festejo lascivo foi recuperado pelo cristianismo e acrisolado de seu paganismo. Foi até subalternizado ao calendário de festas católicas. No Brasil, patrocinado, sua maior expressão é espetáculo televisivo. Está dependente do Jogo do Bicho e do Estado. É frequentado por autoridades. Vendem-se ingressos. Compram-se vagas. Desfila-se para um júri.
Mas isso é História. Interessa-me a Antropologia Cultural: o carnaval restou um período demarcado por alegria oficial: escolas, apoteose na Marquês de Sapucaí, com classificação. O povo bebe, alegra-se, permite-se pequenos pecados, alguma malcriação que o Bolsonaro filma e divulga no Twitter. Raras insubordinações. Bem lido, há muita revelação.
Passagens são datas de marcação simbólica. Novembro, finados, saudades de entes queridos; dia de tristeza. Passou. Natal, solidariedade; nos pusemos solidários. Passou. Primeiro do ano, data de esperança; ficamos esperançosas. Passou. Logo é dia de exultação: Jorge Ben Jor canta que “Em fevereiro tem carnaval neste país tropical abençoado por Deus”.
“Estou me guardando para quando o carnaval chegar \ E que me ofende, humilhando, pisando, pensando \ Que eu vou aturar \ E quem me vê apanhando da vida \ Duvida que eu vá revidar \ Eu vejo a barra…”. Chico Buarque vê e denuncia. Não adianta! É data de felicidade. As pessoas pensam que é música de alegria. Alegria datada, dizia Warat.