Eu não tenho um ego, eu sou um ego. Ego é a imagem minha conforme eu mesmo a vejo. Assim, ainda que essa imagem não corresponda à “realidade”, eu, para mim, sou essa “interpretação”, logo me tomo bem por essa minha conta acerca de mim mesmo. E ego não é só uma imagem de corpo, como corpo costuma ser concebido. É que eu não tenho um corpo, mas sou um corpo.
O corpo é mais que biologia. O pensar, os mecanismos psíquicos, inclusive, tudo compõe o corpo que sou, o corpo-que-pensa, o corpo-eu. E mais que isso: sou um corpo-ser em relação. Sou um corpo-no-mundo. Então, o meu ego é composto, também, pelos outros com quem de algum modo me relaciono. Não há um ego infenso às estimas alheias, às incidências da realidade circundante.
O ego registrado na biologia e em relação emotiva com outros egos resta o corpo-eu. O ego presta contas, digamos, a si mesmo e às circunstâncias que ele habita e que o habitam. O ego, com as circunstâncias que o habitam, deseja se impor às circunstâncias que ele habita, ao tempo mesmo em que presta conta a ambas as circunstâncias. É uma contabilidade complexa que nos acompanha.
O ego tem, pois, que negociar com todas as exigências que lhe são feitas, seja por si mesmo (pelo seu íntimo provido do mundo), seja pelo mundo (as circunstâncias incidentes). Em verdade, segundo Freud, somos habitados por uma nada santa nem apaziguada trindade. Somos três em uma só pessoa: um ego (eu), um superego (eu acima de mim) e um id (algo em mim que eu não sei).
Há em nós uma parte primitiva (id), uma criança sem idade e cheia de vontades, quase um bicho contido; há a civilização (superego), as responsabilidades da vida, muitas cumpridas a contragosto. O ego tem que se equilibrar entre essas instâncias psíquicas: o id quer prazeres, o superego contrapõe valores. Como um gerente – não somos donos de nós – sob pressão, o ego se sente acuado.
O ego sente-se atacado pela estrutura psíquica da qual faz parte. Da contenda, deriva angústia. Para se preservar dessa tensão, cria mecanismos de proteção de si mesmo. Esses mecanismos equilibram o ego. O ego, antes de buscar a realidade, busca equilíbrio, ainda que tenha que se enganar a si próprio. De tal obra, remanescemos equilibrados, contudo, neuroticamente equilibrados.
Desde crianças, conflitos nos habitam e nos neurotizam; neuroses produzem sintomas. Criamos rotas de fuga: idealizamos (construímos na imaginação) situações improváveis; recalcamos (jogamos para o inconsciente) o que nos é insuportável; reprimimos desejos que não nos permitimos; negamos fatos (fazemos de conta); sublimamos vontades (bancando caridade, ou produzindo arte).
Para lidar com conflitos que nos causamos (ou nos causaram), nós nos driblamos. Todos fazemos dessas e doutras coisas. O problema é quando nos passamos da conta, nos permitimos maldades e nos justificamos com esses mecanismos de fuga. Falo de certas racionalizações (uma desculpa “racional” para o errado): a agressão a vulneráveis explicada como severidade cuidadosa.
A racionalização aliada a costumes de violência é um terrível e alastrado mal social. Prontamente se bate numa criança em nome da boa educação; se as agride “com o coração partido”, “para cumprir o dever” corretivo. Igualmente, há a abuso ciumento explicado como “cuidado amoroso”; a violência como ato de “amor” descontrolado (muitas vezes bem recepcionado pela vítima).
E há a muito perigosa formação reativa: o ego acaba se convencendo de que tem um sentimento carinhoso, quando, na verdade, move-se agressivo porque tomado pelo seu oposto. Pense no gesto passional (de paixão extremosa, esse ímpeto de posse). A raiva sentida e manifestada é havida e proclamada como ato de amor, mas é ódio ao que não suporta no comportamento do “ser amado”.
Um ego que se dá tais explicações protetivas camufla furores inconfessáveis. Sofre por sentir-se pouco reconhecido, então edulcora com dizeres sublimes a vendeta da sua humilhação. A impostura advém do sofrimento (narcísico) vertido em hostilidade. Já, então, desesperado, o risco do gesto extremo: livrar-se da fonte da sua angústia. Aí, com discurso de amor se mata por rancor.
A matéria do pensamento é o ideológico circulante (Freud diria superego socialmente dominante). Entre nós – não só entre homens – circula mais machismo do que nos permitimos admitir. O mundo valorativo que nos compõe somado a certos mecanismos de defesa do ego tem justificado violências “cuidadosas” (ciúmes). Tais valores e esses amores, entretanto, têm matado mulheres.