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Heráclito de Éfeso (2500 anos) é complexo. Dele, popularizou-se que “não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”. Heráclito entendia que a realidade era dialética, resultado do conflito, da tensão entre contrários. Ora, em sendo a realidade um resultado, ela estaria sempre no devir. A parábola do rio traduz seu pensamento: ao se retornar a um rio, ele já não terá as mesmas águas, então se entrará no que o rio se tornou, não no que foi noutro tempo.

O Livro de Areia, conto de Jorge Luiz Borges (1899-1986), diz-me que eu posso tentar decifrar o livro que comprei do vendedor que me bateu à porta. Leio-o, tento decifrá-lo. Mas ele me diz infinitas coisas; e se volto a ele, percebo dizeres que não percebera; e se não cuido, escapam-me aspectos que notara. Parece que caio em uma trama: o livro e eu jamais chegaremos a uma conclusão sobre o que ele quer me dizer, ou sobre as leituras que faço dele.

Heráclito fala das contínuas mudanças nas coisas do mundo, nunca me permitindo encontrá-lo igual. Borges diz das relações necessariamente instáveis da minha relação com tudo, inclusive com as ideias que se me foram entranhando. Mas eu gostaria de falar ainda de uma terceira coisa que creio importante: o eu de uma condição humana que nunca está pronta; o eu resultante do meu passado, mas que também é o meu devir.

O mundo não para de se modificar (Heráclito). As certezas com que eu poderia pensar o mundo não se estabelecem (Borges). E eu? Fico eternamente inconcluso? Não é simples jamais estar rematado, pois nunca nos saberemos o suficiente para nos apaziguar. Penso sobre mim a partir de mim mesmo: não alcanço a condição de compreender o mundo, as coisas e as ideias, porque sou sempre mudança. Então, não me entendo a mim.

Eu, que me quero único, suponho-me inexplicável, acredito que isso só acontece comigo. Mas, não sou exclusivo: incertezas, emoções alteradas, sentimentos traiçoeiros, isso tudo sou eu, mas também o é cada humano. Sim, temos particularidades, mas mesmo aí entra a tentação da estrutura social, que me oferece modelos de adaptação às ideologias dominantes, aos modos de produção, aos costumes formatados. Quero ser igual.

Quero ser eu particular, mas desejo ser eu com reconhecimento dentro do sistema estabelecido: se sou um ser social, almejo uma receptividade pública. Para isso, sem contar com a estabilidade das coisas (Heráclito) em um mundo sempre se me apresentando de maneira diversa (Borges), não me reconhecendo igual a mim mesmo, tenho que me impor socialmente. Não sei o mundo. Mal me sei. Não suporto a tarefa, entro em crise.

Eis o que move a História. Interessa-me como me movo a mim mesmo. Não admitimos, mas nossas crises têm um padrão. Nas sociedades primitivas havia rituais de passagem; os indivíduos submetiam-se a celebrações demarcativas do seu status na comunidade. Sua condição social lhe era dada pelo rito. Já inexistem ritos claros que nos situe; há competição anônima por um lugar não sabido. Pomo-nos a competir por uma posição no sistema, mas não sabemos exatamente o que disputamos, nem com quem.

Tenho, em crise, que me fazer disputante de um lugar social incerto. Não será simples me governar quando, na puberdade, meu corpo mudar de repente; ou quando, adolescente, me exigirem os códigos de ingresso na vida adulta; ou quando, adulto, me ditarem as normas impessoais do que se chama de “ganhar a vida”, ou quando, depois de contribuir com o “mercado”, me pedirem para cair fora. Agora, se eu souber que não devo nada disso nem a mim nem a ninguém, tudo será mais divertido, até as crises de estar no mundo.

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